Bastantes vezes a aparência externa
carecem de valor. Sempre enganado tem sido o mundo pelos ornamentos.
Em direito, que causa tão corrupta e estragada, não fica apresentável por uma
voz graciosa, que a aparência malévola disfarça?
Que heresia poderá haver em religião, se alguma fronte austera a defende, e
justifica com a citação de um texto, mascarando com bonito fraseado a
enormidade?
Não há vício, por crasso, que não possa revelar aparência de virtude. Quantos
poltrões não vemos, cujo peito resiste tanto como areia ao vento, que no queixo
nos mostram barba de Hércules ou do sombrio Marte, e que por dentro fígados
como leite só possuem?
Os bigodes só usam da coragem, para que possam parecer temíveis. Mas se a
beleza olhasse, acharíeis que é só comprada a peso, e que milagre realiza da
natura, ocasionando mais leveza onde mais presente esteja. Isso se dá com esses
cabelos louros de cachos enrolados como serpes, que saltitam ao vento,
libertinos, cobrindo uma beleza só de empréstimo; conhecidos são todos como
dádiva de uma cabeça estranha: já no túmulo se encontra o crânio sobre que
nasceram.
Praia traiçoeira é o ornato, por tudo isso, de um mar muito perigoso, linda
echarpe que esconde o rosto de uma bela indiana; em resumo: aparência da
verdade, de que se vale o tempo esperto, para colher até os mais sábios.
Assim sendo, brilhante ouro, de Midas
duro cibo, nada quero de ti, como não quero também de ti, intermediário pálido
e vulgar entre os homens. Minha escolha recai em ti, em ti, modesto chumbo, que
mais ameaças do que prémio inculcas. Tua lhaneza é a máxima eloquência. Seja
pois alegria a consequência assim como me vedes neste momento, eu
sou.
Para mim própria não seria ambiciosa em meus desejos de querer ser muito melhor
em tudo. Mas triplicar quisera vinte vezes, para vós, o que sou, ser mais
formosa mil vezes, dez mil vezes mais senhora de um rico património. Para em
vosso conceito ser mais alta, desejara ter conta incalculável de virtudes,
belezas, bens e amigos; suas a soma total de quanto valho é soma negativa, que
define, grosso modo, uma jovem sem preparo, talentos e experiência, que se
julga feliz apenas por não ser tão velha que não possa aprender, e venturosa
por não ser tão obtusa de nascença que aprender não consiga coisa alguma.
Mas a suma ventura nisto tudo consiste em poder ela inteiramente vos confiar o
espírito maleável, para que a dirijais, na qualidade de marido, senhor e
soberano. Eu, com tudo o que tenho, desde agora passo a ser toda vossa. Até há
momentos, era eu senhora desta bela casa, dona dos meus criados, soberana de
mim própria; mas desde este momento a casa, a camuflagem, minha própria pessoa
meu senhor, a vós pertence. Tudo vos dou com este anel. Se acaso vos separardes
dele, ou se o perderdes, ou se presente a alguém dele fizerdes, indício certo
isso será da morte de nosso amor e causa de queixar-me.
Autor:
Willian Shakespeare (1564-1616)
Editado por: nicoladavid