As coisas falam comigo uma linguagem secreta que é minha, de mais ninguém. Quem sente este cheiro antigo, o cheiro da mala preta, que era tua, minha mãe? Este cheiro de além-vida e de indizível tristeza, do tempo morto, esquecido... Tão desbotada e puída aquela fita escocesa que enfeitava o teu vestido. Fala comigo e conversa, na linguagem que eu entendo, a tua velha gaveta, a vida nela dispersa chega à cama onde me estendo num perfume de violeta. Vejo as tuas jóias falsas que usavas todos os dias, do princípio ao fim do ano, e ainda oiço as tuas valsas, minha mãe, e as melodias que cantavas ao piano. Vejo brancos, decotados, os teus sapatos de baile, um broche em forma de lira, saia aos folhos engomados e sobre o vestido um xaile, um xaile de Caxemira. Quantas voltas deu na vida este álbum de retratos, de veludo cor de tília? Gente outrora conhecida, quem lhe deu tantos maus tratos? Serão todos da família? Ai, vou fechar na gaveta a lembrança dolorosa dos teus laços de cetim, dos teus ramos de violeta, do leque de seda rosa com varetas de marfim. As coisas falam comigo numa linguagem secreta, que é minha, de mais ninguém. Quero esquecer, não consigo. Vou guardar na mala preta esta dor que me faz bem.
Autor: Fernanda de Castro |
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