Procuro
em meus papéis,
nos
baús familiares,
um
perdido testamento.
Encontro
cartas, provérbios em Esperanto,
Pensamentos
de Raumsol e a caligrafia de meu pai.
Homem
de fé, rezava nos cemitérios.
expulsou
demônios em Uberlândia
e
alta madrugada enfrentou o diabo
cara
a cara em Carangola.
Nenhum
dos filhos a tempo o entendeu.
Mas
ele, esperantista,
esperava
as cartas da Holanda,
e
as vacas gordas de José
e
o fim da Torre de Babel.
Meu
pai, cidadão do mundo,
pobre
professor de Esperantoà
beira do Paraibuna.
Lia,
lia, lia. Havia sempre
um
livro em sua mão.
E
chegavam missivas
e
selos fraternais
-mia
caro samideano-
Polônia,
China
Bélgica
e Japão.
Maçon,
grau 33,
letra
caprichosa,
bordava
atas da confraria,
Falava-nos
de bodes e caveiras,
liturgias
impenetráveis
e
um dia trouxe-nos a espada
que
entre os maçons usava.
Aos
domingos, à mesa
refestelava-se
de Salmos:
lia
os mais compridos
ante
a fria macarronada,
Mas sua
flauta domingueira
apascentava
meu desejo
de
pecar lá no quintal
e
arrebanhava as dívidas
despertas
na segunda-feira.
Esteve
em três revoluções.
Não
sei se dava tiros
e
medalhas nunca foi buscar.
Capitão
de milícias
aposentado
por desacato ao superior
discutia
política sem muito empenho.
Votava
com os pobres: PTB-PSD.
Tio
Ernesto era udenista
e
cobrava-lhe rigor.
Levou-me
a ver Getúlio
num
desfile militar.
No bolso,
uma carta
expondo
ao Presidente
penosa
situação:
injustiças
militares,
necessidade
de abono
e
pedia uma pasta de livros
pro
meu irmão.
Isto
posto, era capaz de esperar
semanas
e meses
sem
desconfiar, que ao chorar
ouvindo
novelas
da
Rádio Nacional
era
ele próprio personagem,
porque
se, como diz García Marquez,
ninguém
escreve ao coronel,
o
ditador jamais escreveria ao capitão.
Noivo
contrariado,
fugiu
com minha mãe
e
com ela trocou cartas, que vi,
escritas
com o próprio sangue.
Brigou
com o carroceiro
que
chicoteava uma besta
diante
de nossa porta.
E
quando a tarde crepusculava,
tomava
a bilha paralítica no colo
passeando
seu calvário pelas ruas
do
interior.
Certa
vez, como os irmãos
pusessem
em mim trinta apelidos
querendo
me degradar
chamando-me
de “guga”,
“tora”,
“manduca” e “júpiter”,
certa
noite, notando-me a tristeza
levou-me
pro quintal
entre
couves e chuchus:
mostrou-me
Júpiter, a enorme estrela
e
outras constelações; peixes
touros,
centauros, ursas maiores e menores
tudo
a brilhar em mim
estrelas
que com ele eu distinguia
e
desde aquela noite
nunca
mais pude encontrar.
Autor: Affonso Romano de Sant’Anna
Editado por: nicoladavid